domingo, 3 de agosto de 2014

Ciro - o conto


A TV plásmica estava ligada ali na grande antessala e ninguém dava a ela a mínima atenção. Pessoas passavam em frente à tela flutuante na correria de suas vidas espirituais e mal se apercebiam das notícias apresentadas. Somente Ciro, olhava fixo a tela, mas não era possível saber se via ou ouvia o conteúdo da programação, tão distante era o seu olhar.

Uma linda repórter volitava diante de uma grande tela anunciando as manchetes do dia à população daquela esfera espiritual que abrigava, de acordo com o último censo diário, uma população de espíritos desencarnados vindos do Planeta Terra já por volta de 20 milhões de espíritos. Algumas pessoas chegavam mesmo a comparar a vida em Sólius com a vida na distante cidade terrena de encarnados no Brasil, São Paulo.

Não fosse pela excelência em sua organização e na paz que reinava por todas as vias da colônia, Ciro sempre achava aqui e acolá uma ou outra semelhança: a correria do dia-a-dia, o intenso tráfego de aerobuses que serviam aos espíritos ainda pouco acostumados à vida espiritual à qual haviam retornado, e que ainda precisavam se locomover com suas pernas, já que ainda não dispunham do conhecimento da volitação, e a tristeza no semblante de alguns cidadãos que circulavam pela cidade, aquilo lhe lembrava muito sua longínqua São Paulo.

A apresentadora e repórter vestia uma bela túnica azul que fazia movimentos majestosos de acordo com seus movimentos graciosos, enquanto volitava de um lado a outro da tela a mostrar imagens da própria colônia ou de outras colônias-irmãs.

- Não percam, hoje à noite, uma reportagem especial sobre famosos da esfera terrena. Nosso querido Cazuza, fala do reencontro com seu pai, João Araújo. A megastar, Whitney Houston, fala de seu envolvimento com as drogas no plano terreno e de suas histórias de vidas pregressas. E a grande revelação do século passado no Planeta Terra, Elis Regina, canta pra todos nós com sua divina voz, um pouquinho de seus últimos sucessos gravados e plasmados já aqui em nossa colônia, meus amigos.

Ciro sentia uma dor profunda em seu coração. Imagens da saudade que tinha da terra e de seus entes queridos vinham à sua mente a todo instante. Encontrava-se como que em um estado de torpor e ansiava por seu primeiro encontro semanal com o terapeuta, Dr. Sigmund. Sentia-se feliz por ter a seu dispor tanta tecnologia, conforto mesmo, coisa que jamais teve acesso em sua última vida, já que havia nascido em uma favela da zona sul de São Paulo e tudo que havia tido de mais valioso em sua vida havia sido um cachorrinho vira-lata chamado Billy e uma caixa de sapatos com a qual iniciou sua vida profissional quando contava não mais que 10 anos de vida na esfera terrena.

Aos 13, o crack já era seu companheiro diário, só ele lhe dava um pouco de liberdade, fazia-o flutuar por sobre seus sonhos e pensamentos, o transformava em qualquer coisa que quisesse ser: um médico, um cientista, um astronauta, qualquer coisa podia ele ser quando o crack lhe invadia o cérebro. Quantas vezes Ciro havia sido visto a conversar sozinho pelos faróis da cidade de São Paulo enquanto carregava uma pequena caixa de doces? Todos achavam que ele era louco, mas ele só estava sob efeito de alguma droga alucinógena que o permitia sentir menos dor e desconforto na tentativa de prosseguir com sua sofrida vida.

Aos 15, já se prostituía para comprar drogas. Ele se sentia atraído fisicamente por meninas, mas havia encontrado no sexo uma forma de ganhar dinheiro. Ia sempre a um parque na região da Avenida Paulista, o Parque Trianon, e lá se encontrava com senhores bem mais velhos, alguns poderiam ter sido seu avô, e se submetia a toda sorte de caprichos sexuais de seus clientes a troco de uns poucos trocados que imediatamente se transformavam em mais uma pedra de crack, e mais uma, e mais uma.

Aos 16, uma tosse chata não lhe deixava o corpo, sequer conseguia pegar no sono à noite. Os clientes reclamavam-lhe a falta de carne no corpo, já que alguns diziam-lhe que ele tinha que ter o que pegar. Não lhes bastava somente aquele grande naco de carne com o qual a natureza havia lhe presenteado entre as pernas, sentiam falta de suas curvas e de seus glúteos também avantajados, que já não se faziam mais se aperceber por entre seus ossos, muitos dos quais já expostos pela intensa magreza da qual ele havia sido acometido nos últimos meses. Chegou mesmo a perder alguns clientes, aqueles que lhe apreciavam a região glútea não nutriam por ele mais nenhum interesse, e consequentemente, não lhe davam mais dinheiro algum. Às vezes, ou melhor, muitas vezes, uma lata de cola para cheirar era a única coisa que lhe dava algum conforto já tarde da noite, quando o estômago lhe doía, reclamando por comida.

Ciro contraiu o vírus da AIDS aos 15 anos de idade, isso constava em seus registros no Ministério da Identidade de Sólius. Ele havia descoberto muito sobre si mesmo desde sua chegada 3 meses antes. Ainda havia muito a ser descoberto, pensava ele. Por que motivo havia tido uma vida tão desgraçada? Porque havia o tal Deus do qual todos lhe falavam ainda na Terra sido tão cruel com ele? Por que havia perdido os pais ainda criança, vítimas da droga e da AIDS? A mesma que lhe ceifara a vida aos 17 anos de idade terrenos? Por que tanto sofrimento? – pensava Ciro absorto em sua cadeira sem pés. Ele achava o máximo o fato de que os objetos em Sólius flutuavam como uma pirâmide que ele havia visto em uma reportagem do Fantástico ainda quando encarnado. Os cientistas que analisavam o fenômeno diziam que aquilo era uma farsa, a menos era isso que ele tinha entendido, que não havia na flutuação daquela pirâmide nada de encantado, que provavelmente ela era feita de um imã que estava em cima de um polo contrário, que a repelia, e aquilo dava à pirâmide a impressão de estar flutuando. Ele imaginava se aquela pirâmide que havia visto na TV não teria o mesmo tipo de tecnologia que os objetos de Sólius tinham. Alguém havia lhe dito dias antes que tudo que havia na Terra era uma cópia ainda mal feita de toda a tecnologia do mundo espiritual, que era muito mais avançado. Que as naves espaciais, as curas para as doenças, o celular, a internet, tudo havia sido inspirado na Terra por espíritos especialmente designados para encarnarem na Terra e levarem até eles o progresso e a tecnologia. O número de coisas, objetos, aparelhos, sensações do corpo e do cérebro aos quais Ciro tinha sido apresentado naqueles poucos mais de 3 meses em que estava em Sólius, lhe faziam imaginar o quanto ainda estavam atrasados na Terra e quanto tempo ainda demoraria para aquilo tudo estar disponível na esfera onde havia sido encarnado. Depois pensou e entendeu que aquele tipo de coisa era comum mesmo na Terra, ou seja, a tecnologia que os países desenvolvidos possuíam era muito aquém da tecnologia que seu próprio país, o Brasil, possuía. Por que haveria de ser diferente entre o Plano Espiritual e o Plano Físico, fazia sentido, pensava.

Foi trazido de volta de seus pensamentos por uma voz que o chamava de dentro da saleta onde o psicólogo estava.
- Entre, Ciro. Fique à vontade, sente-se, por favor. – disse-lhe o homem com silhueta de bonachão. Tinha um sorriso entre os lábios que lhe indicava a simpatia no espírito. Em que posso ajudá-lo, meu filho?
- Bem, doutor...eu não sei bem por que to aqui. Eu não tenho problema psisqui...psisqui...
- Psiquiátrico, Ciro?
- Sim, doutor, desculpa. To nervoso.
- Se acalme, meu filho.
- Tá, doutor. Bom, pelo que eu entendi, eu desencarnei porque tinha AIDS. Tudo começou quando... – o médico lhe interrompeu.
- Ciro, meu filho, você não precisa me dizer nada. Eu já sei tudo a seu respeito. Eu estou aqui para lhe orientar sobre a sua nova vida nesta colônia espiritual para espíritos vindos do Brasil.
Uma pequena lágrima formou-se nos olhos de Ciro. Ouvir aquilo, que havia morrido, era já sabido por Ciro, mas ele ainda não havia se acostumado com tudo, por mais que tentasse, era ainda tudo muito difícil.
- Ciro – continuou o terapeuta – você desencarnou vítima de uma tuberculose que se agravou por causa do vírus HIV que você tinha em seu organismo quando estava encarnado. Na verdade, você ainda teria vivido muitos anos, não fosse por sua resistência em tomar as medicações de acordo com a prescrição do seu médico terreno.
- Então eu morri antes da hora, doutor? – perguntou atônito com a revelação.
- Sim, meu filho. Não há milagre que possa ser feito, quando o doente, de qualquer que seja a doença, não faça sua parte. Você foi diagnosticado com tuberculose, sua resistência física já estava bem baixa quando a doença foi descoberta, e infelizmente, o uso das drogas não lhe permitia discernir sobre o que estava fazendo. Você não tomava os remédios, nem para a tuberculose, nem para controlar a multiplicação do vírus HIV em seu organismo. Foi isso que culminou no óbito de seu corpo físico.
- Cul o quê?
- Culminou, Ciro, foi o resultado, entende?
- Sim, entendo, doutor. Doutor, aqui as pessoas têm Aids também? Eu vi lá no hospital onde estive que tinha muitas gente que tavam doente. Eles gritavam de dor, eu mesmo sentia muita dificuldade pra respirar mesmo já tendo morrido. Isso é normal, doutor?
- Sim, Ciro, isto é perfeitamente normal. As sensações são trazidas para cá, enquanto a pessoa não se dá conta, não aceita que já não pertence mais àquele corpo que deixou lá na Terra, as sensações são as mesmas. Há dor, desconforto, sensação de fome, tudo que havia antes, porque estas sensações ainda estão no seu cérebro, entende?
- Entendo, doutor, mas agora não tenho mais fome da mesma forma que tinha. Tomo aí os líquido que dão pra mim tomar lá na casa aonde eu tô, e aquilo me faz sentir bem, sem fome.
- Sim, Ciro, você está certo. As sensações terrenas, todas, irão se dissipando pouco a pouco, conforme você se adequar mais e mais a esta nova atmosfera em que vive. Você está surpreso com o que eu lhe disse, não está?
- To sim, doutor. Eu achava que ia morrer mesmo, por isso não dei bola pras medicação que o médico me mandava tomar. Aqueles remédio que eu tinha que tomar todo dia pra tuberculose, doutor, era muito ruim, me dava um enjôo...os pra AIDs então, nem pensar! Minha boca ficava com gosto de lata, umas sensação estranha, sabe? Tinha caganera todo dia! Vivia mais nos mictório das rua do que debaixo dos meus cobertor. Quando eu num fazia nas rua mesmo! Era muito ruim, doutor! Se eu sabia que podia me curar, eu tinha tomado tudo direitinho, doutor...eu juro!
- Ciro, o que passou, passou. A AIDS nada mais é do que uma prova, uma prova que você mesmo pediu antes de nos deixar há 17 anos no tempo da Terra. Infelizmente você falhou nessa prova, mas não se lamente, meu filho, você passou em muitas outras!
- Mesmo, doutor? Eu tive uma vida desgraçada, doutor! Não fiz nada não...não servi pra nada...era só um nóia que passava o dia inteiro nas rua pedindo e me postrituindo...só isso.

O médico sorriu para ele, aproximou-se e tocou-lhe o ombro.

- Tá rindo do jeito que eu falo, né, doutor? Eu num tive instrução, nunca fui na escola.
- Eu sei, meu filho, não estou rindo de você, estou sorrindo para você. Com o passar do tempo, vamos nos ver semanalmente, você vai poder entender quanta coisa boa você fez em sua vida. Hoje eu vou conversar só mais um pouquinho com você, visto que este é nosso primeiro encontro, mas com o passar do tempo, todas as semanas, você será instruído na sua vida espiritual.Passará a se lembrar de coisas de outras vidas, que o trouxeram até esta, que acabou de terminar no plano terreno e reiniciar no plano espiritual, aqui em Sólis.

As lágrimas já caíam dos olhos de Ciro em abundância. Ele já não as segurava mais, não havia razão para isso, ele pensava. Ele estava liberto das dores terrenas e aos poucos livrava-se de sua ignorância que ainda impregnava seu espírito. Aos poucos as coisas passavam a fazer sentido pra ele, vagarosamente, mas de forma acalentadora ao seu espírito ainda impregnado de sensações terrenas. O doutor continuou:

- Quantas vezes você dividiu seu cobertor sujo com outro morador de rua nas noites frias de São Paulo, Ciro? Quantas vezes você foi acuado pelos seus parceiros de ruas a roubar das pessoas e negou-se a fazê-lo? Mesmo sabendo que corria perigo por isto? Quantas vezes você deixou de comer na sua infância para dar de comer à sua irmã mais nova, Ciro? Você salvou a vida de sua irmã várias vezes, Ciro. Você mudou a vida de uma criança quando naquela vez na Rua XV de novembro, alta madrugada, você não permitiu que ela usasse o crack pela primeira vez. E foi aquele seu ato, Ciro, que salvou a vida daquela criança. Hoje ele é um adolescente sadio, honesto e trabalhador. E nunca usou drogas, Ciro, graças a você, que incutiu em sua mente através de suas duras palavras o sentido do certo e do errado. Você usou sua própria miséria terrestre para dar de exemplo a uma criança e aquilo a marcou para o resto da vida. Impedindo que ela caísse no mundo das drogas.

Ciro chorava intensamente enquanto ouvia atentamente as palavras do psicólogo. Havia pela primeira vez em muitos anos, encontrado o significado da palavra autoestima, graças às palavras de alguém que lhe era totalmente estranho até então.

- Sabe, doutor. Eu descobri uns dia atrás que a gente pode trabalhar ajudando os encarnado quando tiver em condição, é verdade isso?
- Sim, Ciro, é verdade, o trabalho enobrece nossa missão tanto na Terra como aqui. Através do trabalho, da caridade, conseguimos dizimar inúmeros pensamentos e ações negativas que trazemos em nossos espíritos, uma vez que somos todos imperfeitos em constante trabalho de aprimoramento espiritual, meu filho.
- Então, doutor, eu queria, um dia, assim, quando dé, né? Trabalhar ajudando os portador a ser mais forte, sabe? A tomar os remédio, a num infectar as pessoa na hora que tão com a cabeça cheia de droga, estas coisa.
- Com certeza, Ciro. O trabalho de influência através de boas ideias e de inspiração feito por nós, espíritos, é enorme, as pessoas nem imaginam lá na Terra. Há um caso de um escritor, chamado Anderson Ferreira, que foi muito influenciado por nós ao escrever um livro contando às pessoas sobre sua experiência de vida como portador. Ele vive há muitos anos com o vírus, coisa que é possível a muitas outras pessoas, que infelizmente se deixam levar por ideias suicidas, não somente do suicídio como ato em si, mas no suicídio como falta de cuidado com o próprio corpo. Elas desistem muito facilmente, ou porque não se dão com os efeitos colaterais da medicação, que hoje em dia são pouquíssimos comparados ao que eram no final da década de 90, mas também porque temem mudanças em seus corpos físicos, mudanças estas, que às vezes são inclusive necessárias para que elas aprendam a lidar com sua missão como portadores, com suas vaidades, etc.
- Pôxa, doutor. Nunca tinha pensado nisso! Às vez a gente fica muito ligado nas aparência e se esquece do espírito, né, doutor? Se a gente soubesse que no espírito sempre somos bonito, a vida ia ser mais fácil lá na terra, num ia, doutor?
- Com certeza, Ciro, mas aí então não haveria mérito algum. O grande mérito é justamente o esquecimento da vida espiritual, para que façamos escolhas baseadas em nossa fé no Criador e em nosso Mestre Jesus. A fé salva, Ciro. Ninguém é vítima de nada, meu filho. Todos passamos por aquilo que temos que passar, uns mais, outros menos, dependendo de sua elevação espiritual, que nada tem a ver com bens materiais, beleza física, ou dotes de qualquer natureza. Você vai aprender sobre tudo isso, meu filho, ou melhor, vai se relembrar de tudo isso, aos poucos, tenha paciência. Agora nossa hora acabou, espero lhe encontrar aqui semana que vem no mesmo horário para darmos prosseguimento a nosso tratamento. Até mais – disse-lhe estendo-lhe a mão e exibindo um sorriso largo em seu rosto sereno.

Ciro saiu daquela sessão terapêutica renovado, lembrou-se de sua mãezinha, da qual havia se despedido na Terra antes mesmo de completar 4 anos de idade. Imaginou onde ela estaria, se estaria ali naquela colônia como ele, se estaria já de volta à Terra. Mas não se sentiu angustiado, pois sabia que todas as respostas estariam por vir de acordo com a permissão do Pai, para que ele continuasse sua missão de elevação espiritual, assim como todos nós.

Anderson Ferreira em 03 de agosto de 2014.



2 comentários:

  1. Parabéns!!!És realmente luz divina, em forma de ser humano! Lindo trabalho meu nobre irmão! Continue sempre assim.

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    1. Muito obrigado pelas palavras carinhosas postadas em 02/10/2014, leitor anônimo! Grande abraço! ;-)

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