terça-feira, 12 de janeiro de 2021

2 anos sem postar nada + A série da Neftlix: POSE

 

Meus queridos leitores,

Exatos 2 anos, 1 mês e 9 dias após meu último post neste blog querido onde tantas coisas boas vivi, aprendi, conheci, retorno em postagem.

O meu prazer ao escrever é quase que sexual...rs...me deixo levar pelas palavras que surgem através dos meus toques no teclado e me desnudam para vocês. Estou poético hoje...rs.

O excesso de trabalho associado ao desinteresse coletivo pelo assunto ‘ser soropositivo’, acabaram me afastando, acho. Ou talvez seja apenas uma desculpa esfarrapada minha, não sei. Na verdade, como dizemos hoje em dia, não rolou e pronto. O importante é que estou aqui, muitos devem ter pensado: Anderson se foi para o outro lado e deixou seu blog online. Não, ainda não fui. Em 13 de março de 2020 completo 33 anos que sei que convivo com esse vírus que apavorou  muitos jovens nos anos 80 e 90, e que muitos fazem de conta não temer ainda nos dias de hoje. Nos anos 80 e 90 era pânico, hoje em dia, no meu modo de ver, é desprezo e falta de entendimento sobre o quão grave isso ainda é. Melhor que antes? Sim, mas não é fácil não. Os anos 80 e 90 foram a pior época, porém, respeito e sei que muitos ainda se abalam muito com a descoberta do HIV em suas veias ainda nos dias de hoje. Não posso dizer com certeza porque infelizmente hoje já não frequento grupos de apoio. O último que frequentei foi o GIV – Grupo de Incentivo à Vida, até meados de 2002. Sim, já faz 18 anos que não apareço por lá, mas sei que continuam ainda fazendo um excelente trabalho.

Há ainda militância para a prevenção, pelo combate ao preconceito etc. Acredito que não mais como o velho GAPA – Grupo de Apoio e Prevenção àAIDS. Me corrijam se eu estiver errado. A falta é minha, bem sei, por ter me afastado. Acabei soltando o livro “a Harte de vIVer” por aqui e deixei que as coisas andassem sozinhas. Vez ou outra respondo a um e-mail de um leitor na minha caixa de mensagens, mas já não posto mais minhas respostas por aqui.

Acho que fiquei velho e ninguém mais está interessado em ouvir as coisas que tenho a dizer, sei lá, será que estou querendo confete? Kkkk....provavelmente sim. Estou carente, deve ser isso...rs.

Vou ser breve ao falar de mim porque quero mesmo é falar de um filme, uma série da Netflix que acabei de assistir às 6 horas da manhã de ontem e me fez refletir sobre muitas coisas. Estou em férias e de licença médica. Nada grave. Meu psiquiatra diagnosticou Síndrome de Burnout. Estou com problemas sérios de memória, falo 2 línguas, mas às vezes esqueço construções básicas na minha língua nativa, português, e na minha segunda língua, inglês. E há uma outra série de fatores referentes à memória recente que têm me afetado, mas não vou falar disso. Tudo isso é resultado de quase 10 meses ininterruptos de trabalho diário que beiravam quase todos os dias, 12, 14, até 16 horas ao dia em home office graças à pandemia...chega uma hora em que a mente e o corpo cobram o prejuízo, isso eu já sabia.

Minha contagem de linfócitos CD4 em dezembro de 2020 estava em 1000 e alguma coisa, ótima contagem já há alguns anos...meu recorde é 1228. E a carga viral para o HIV já faz muito tempo também está indetectável! Wow! Que notícia boa! Então está livre de infecções, Anderson? – muitos podem estar me perguntando aí. Infelizmente não, primeiro porque acho que nossos linfócitos são meio, como diria? Sendo politicamente correto em tempos de hoje? Bem, eu diria que os linfócitos de soropositivos que vivem com HIV há 33 anos como eu, são meio quê, linfócitos com necessidades especiais, se é que me entendem...rs. E para quem leu meu livro e sabe que em 1987 fiz uma cirurgia de retirada de condilomas, no auge da epidemia de Aids, quando ela era ainda fatal caso ficássemos doentes, e depois tive que fazer outra cirurgia em 1994, 7 anos depois, porque eles voltaram, e agora, em 2020, 26 anos após a segunda cirurgia, terei que fazer outra cirurgia, pois eles retornaram. “Mas como assim, doutora? Estou vendendo CD4 e estou indetectável, podem mesmo ter voltado? Por quê? – perguntei à médica há cerca de uma semana. E a resposta dela foi: “stress, provavelmente pelo stress que passou trabalhando sem parar todos estes meses de “isolamento”, seu organismo não aguentou e eles retornaram. Vamos ter que operar você novamente”.

E lá vamos nós! Depois conto a vocês como correu tudo. Acho que ainda não vai ser desta vez...rs....já deu pra perceberem que sou duro na queda, né?

Tirando isso e o problema mental, estou bem...rs. Bem, só contei a vocês por que depois de 2 anos desaparecido não podia contar só coisas boas, né? Mas tenho certeza de que será só mais um capítulo meio chato nos capítulos por vir na 2ª parte do Harte...rs... afinal de contas parei em 2003 e muita coisa boa aconteceu de lá para cá, mas fica para um segundo livro.

Vamos à razão pela qual eu vim até aqui hoje. Quem já viu a série da Netflix “Pose” e discordar com algo que eu diga aqui nas próximas linhas, por favor, fique à vontade pra discordar nos comentários, ok?

A série é composta de 18 episódios de em média 45 a 60 minutos cada um. E o melhor de tudo: tem fim. Sim, porque eu perco interesse por séries pelas quais tenho que esperar 1 ano para continuar a ver. Me perco na estória e perco interesse, não vejo mais. Foi assim com Lost, Lucífer, A Casa de Papel e até mesmo com How to Get Away with Murder com a diva Viola Davis. Tenho muitos amigos que não assistem por causa dessa descontinuidade, maior ainda agora causada pela pandemia do coronavírus nos estúdios de gravação. Voltando ao assunto; pra mim, a série acaba no último episódio da Temporada 2, 18º episódio. Se os produtores quiserem ainda tem história, mas ficou tudo bem resolvido no último episódio. Exceto por uma curiosidade minha que ficou, mas não vou dar spoiler.

Pose (do verbo “posar” em inglês e uma alusão ao strike a pose de Madonna) conta a história de pessoas que vivem à margem da sociedade americana em 1987. Sim, mesmo ano em que eu, Anderson, descobri que era HIV, mas até aí, pensei, já na primeira cena, quando vi a indicação da época: nada a ver, deve ser um filme chato que me recomendaram só porque fala de Aids naquela época, deve ser um terror só, não vou passar do primeiro episódio, porque não gosto de tragédia, drama tudo bem, mas tragédia não...rs..., mas eu estava errado. A série conta a história dos travestis, do gueto gay na Nova Iorque de 1987 até aproximadamente 1990, 1991, se não me engano.

Blanca é uma travesti de origem latina que does not pass (não passa facilmente por mulher) e que tem dificuldades em se aceitar por isso. A frase “you pass” (você passa por mulher) aparece de quando em vez durante a série como o melhor elogio que uma travesti ou transexual possa receber. Algumas são lindas, perfeitas, they pass, mas Blanca não.

As personagens das travestis Elektra e Angel são bem sucedidas porque elas passam, o mesmo não acontece com Blanca, que luta pela sobrevivência trabalhando como manicure e participando de concursos à noite em uma boate gay onde as pessoas vivem verdadeiros sonhos representando temas da sociedade (categorias de vestimenta) através de carões e roupas e acessórios que as levam a representar pessoas da sociedade à qual elas não pertencem: a executiva, a mulher real, realness (leia-se: o mais próximo que conseguem chegar de uma mulher cisgênero, ou seja, uma mulher que convive perfeitamente satisfeita com sua forma física e gênero com o qual nasceu, algo muito próximo do antigo termo “heterossexual”...rs ), luxo, a madame na casa de chá, o militar, etc, etc, etc...infindáveis categorias que nos deliciam e chegaram até a me cansar depois de alguns episódios, mas não foi isso que me chamou a atenção.

O que mais me chamou a atenção é a maneira como as personagens são tão bem construídas e tão reais, embora estejam tão distantes da vida da maioria de nós. Quantos de nós convivemos no submundo dos travestis? Eu sou um homem gay e o mais próximo que cheguei de uma travesti em meus 53 anos de vida foi observando-as no palco nas boates na época em que eu as frequentava. Ou através da diva Rogéria, que teve acesso às telas da TV porque a rotularam de travesti da família e permitiram que ela entrasse em nossas casas. Se ela fosse desbocada como Dercy Gonçalves, não teria chegado aonde chegou, com certeza. Rogéria não podia ousar além do seu talento artístico, caso contrário, não teria sido “aceita”. Quem aí ouviu Roberta Close dizer alguma barbaridade que chocasse? Não, era uma boa moça, e Roberta passava, passou, porque virou mulher através da dolorosa cirurgia cujas dores só elas mesmas devem ser capazes de narrar. A atual (reprisada) novela “A Força do Querer” explica bem a diferença entre um travesti e uma mulher e um homem trans. Os transexuais não são felizes com o corpo que têm, não o aceitam e sofrem com isso, almejando um dia poderem alcançar a graça de sofrerem uma cirurgia que possa dar-lhes a genitália com que sonharam desde que assim se descobriram. Já os travestis são homens que vivem sua mulher interior de forma às vezes extremamente convincente, mas gostam da genitália que têm, e não a menosprezam nem tampouco a abominam. E os gays (homossexuais), como todos sabem, são homens que gostam de homens e mulheres que gostam de mulheres. Alguns homens gays gostam de homens mais masculinos, outros gostam de homens mais afeminados, mas no final das contas somos todos gays. E há várias categorias criadas, razão pela qual criaram a sigla LGBTQIA+. Em suma, somos todos objetos de preconceito até os dias de hoje. E pasmem, muitos de nós temos preconceito contra nós mesmos, homens gays contra mulheres gays, homens gays contra homens gays passivos, homens gays contra gays afeminados, homens gays contra travestis etc., etc., etc....enfim, somos todos humanos e complicados. Não somos nem melhores nem piores do que outros seres humanos. Somos todos da mesma raça: a raça humana, mas nos dividimos em inúmeras categorias, que me atrevo a dizer, uma mais imperfeita que a outra e todas se acham perfeitas. Não vou nem entrar no tema cor da pele, etnia, classe social, religião e tendências políticas porque não terminaria nunca de escrever e não chegaria à conclusão alguma.

“Pose” nos mostra seres humanos, não nos mostra heróis, mas nos mostra verdadeiros seres humanos. Sim, porque aquela pessoa que eu odeio em minha vida porque é mesquinha, porque é má, porque é traiçoeira, aquela mesma pessoa, é um anjo para outros, nunca os feriu nem os ferirá, porque os ama e precisa deles, porque precisamos das pessoas que amamos, e tentamos dar o troco diariamente às pessoas que nos fazem mal. Ou simplesmente fugimos delas porque não temos forças para enfrentá-las, mas nos esquecemos que em algum lugar elas são amadas, porque merecem também ser amadas. Eu não tenho dúvidas que muitos me odeiam porque mostro a eles o pior de mim, e muitos me amam porque lhes mostro o melhor de mim. Porque sou humano.

Pose me fez pensar que ninguém é vilão/vilã ou herói/heroína. A história me fez odiar e amar a mesma personagem inúmeras vezes. Alguns são capazes de agir da forma mais baixa à qual um ser humano pode chegar para sobreviver, e esta mesma personagem me fez chorar quando demonstrou sua vulnerabilidade e me fez entender que muitas das vezes atacamos no intuito de nos defendermos do sofrimento que tememos sofrer caso nos mostremos vulneráveis. Assim fazem todos os animais, e nada mais somos do que animais, bem sabemos disso, racionais, quase sempre.

Eu mergulhei em minha própria história narrada em meu livro e na história de muitos de nós através da narrativa da série. Recordei o preconceito sofrido por ser soropositivo dezenas de vezes durante a vida. Ainda sofro até os dias de hoje, em 2020. 2021 mal começou, estou em distanciamento social e ainda não deu tempo de ninguém me magoar por ser preconceituoso comigo. Pose me fez lembrar de algumas coisas. Lembrei que tive a sorte, o privilégio, de embora ter nascido pobre, ter nascido branco de olhos azuis em um país extremamente racista. Embora seja gay, ter tido a sorte de conseguir esconder minha feminilidade e assim agradado às pessoas que me dizem: “ah, mas você nem parece”, me fazendo entender que sendo masculino sou mais aceito. Nem sei se sou masculino, mas me fizeram acreditar nisso. O que é uma grande besteira, porque na maioria das vezes estou fingindo, escondendo o que tenho de mais bonito em mim, minha docilidade, minha sensibilidade, em nome de um melhor viver na cruel sociedade na qual vivemos. Em nome de não ter portas fechadas, mas isso muitas vezes na vida me fez sentir um traidor diante daqueles que simplesmente não conseguem ser diferentes, são simplesmente o que são porque não têm o talento que eu tenho pra fingir, fingi tanto que me tornei o que fingia. Mas muitos apanham por isso, são mortos e torturados por serem quem são. E isso é muito errado. É o mundo que tem que mudar, não eles!

Sei que dentre estas 18.000 pessoas que já passaram por aqui nestes anos todos, muitos são soropositivos como eu, ou talvez trans, lésbicas, gays machões, gays afeminados, gays considerados feios, bonitos, de pele branca, de pele preta, asiáticos, não importa, sei que cada um é um, e todos temos o direito de existir e ser feliz, na medida do possível, neste mundo tão lindo e tão cruel no qual vivemos.

Como tenho uma mente matemática, embora seja de Humanas, sei que quando completei 40 anos, em 2007, eu havia vivido metade da minha vida sem o vírus e a outra metade com ele. E acreditem, talvez sem ele eu tivesse sido uma pessoa extremamente fútil e vazia. O vírus me mostrou que eu não era nada aos 20 anos, independente da minha beleza física e inteligência, eu nada era, e ainda nada sou, mas ele me fez tentar ser melhor, lutar contra ele. E não sou super herói por tê-lo vencido até o dia de hoje, só tive a sorte, a benção, de ter um organismo que por alguma razão levou 12 anos para sucumbir à presença dele, e quando sucumbiu pela primeira vez, a ciência já havia feito muito mais do que ter inventado apenas o AZT, que sozinho mais matava do que salvava devido à sua toxicidade. A mesma sorte não tiveram milhões, dentre eles, amigos meus que se foram até pouco tempo atrás, e muitos, muitos famosos: Rock Hudson, Cazuza, Sandra Bréa, Lauro Corona, Fred Mercury, e tantos outros que se eu for escrever aqui nunca terminarei este post.

Matematicamente também sei que quando eu fizer 60, daqui a 7 anos, terei convivido com o vírus da Aids por 2/3 (dois terços) da minha vida. É tanto tempo! E tão pouco tempo. É muito tempo quando temos 20, mas quando temos 53, 60 anos são nada. Nem 70, e talvez nem 80, tudo depende da forma que vivemos, da forma que lidamos com as pessoas, que são a verdadeira razão para estarmos aqui, para aprendermos a lidar com elas e com nós mesmos. O resto é descartável, desaparece.

Pose nos mostra a vida e a morte dentro de uma perspectiva por muitos de nós sequer imaginada. Não estou falando do fantasma que vez ou outra aparece em alguns episódios, embora eu acredite neles e na vida espiritual. A vida é mostrada através do gueto, que a maioria de nós, acredito, não conhece na vida real. A maioria. Acredito que alguns leitores tenham convívio com essa realidade, claro, mas são minorias que acessam um blog, infelizmente. Pra ser sincero, acredito que a maioria de nós viva em uma bolha, e me incluo nisso. Na bolha da Esquerda, do Centro, da Direita, da Classe Média, da Classe B, C, D, enfim, Pose me fez sair um pouco da minha bolha, embora a temática Aids seja comum a muitos de nós, viver à margem da sociedade não é, acredito eu. E foi muito bom conhecer esse mundo, mesmo que cenográfico, porque de agora em diante vou procurar olhar os travestis com mais respeito, com menos medo, lembrando sempre que são seres humanos como nós que não tiverem um terço da chance que nós tivemos. Quando falo de respeito falo mesmo no sentido de admiração, nunca desrespeitei um travesti, mas tive medo deles. E o filme me fez entender que eles têm que se defender diariamente dentro de uma realidade por mim jamais imaginada, ou melhor, já sim imaginada, mas nunca tão bem representada através de uma câmera e um enredo.