Meus queridos leitores,
Exatos 2 anos, 1 mês e 9 dias após meu último post neste
blog querido onde tantas coisas boas vivi, aprendi, conheci, retorno em postagem.
O meu prazer ao escrever é quase que sexual...rs...me deixo levar
pelas palavras que surgem através dos meus toques no teclado e me desnudam para
vocês. Estou poético hoje...rs.
O excesso de trabalho associado ao desinteresse coletivo pelo assunto ‘ser soropositivo’, acabaram me afastando, acho. Ou talvez seja apenas uma desculpa esfarrapada minha, não sei. Na verdade, como dizemos hoje em dia, não rolou e pronto. O importante é que estou aqui, muitos devem ter pensado: Anderson se foi para o outro lado e deixou seu blog online. Não, ainda não fui. Em 13 de março de 2020 completo 33 anos que sei que convivo com esse vírus que apavorou muitos jovens nos anos 80 e 90, e que muitos fazem de conta não temer ainda nos dias de hoje. Nos anos 80 e 90 era pânico, hoje em dia, no meu modo de ver, é desprezo e falta de entendimento sobre o quão grave isso ainda é. Melhor que antes? Sim, mas não é fácil não. Os anos 80 e 90 foram a pior época, porém, respeito e sei que muitos ainda se abalam muito com a descoberta do HIV em suas veias ainda nos dias de hoje. Não posso dizer com certeza porque infelizmente hoje já não frequento grupos de apoio. O último que frequentei foi o GIV – Grupo de Incentivo à Vida, até meados de 2002. Sim, já faz 18 anos que não apareço por lá, mas sei que continuam ainda fazendo um excelente trabalho.
Há ainda militância para a prevenção, pelo combate ao preconceito
etc. Acredito que não mais como o velho GAPA – Grupo de Apoio e Prevenção àAIDS. Me corrijam se eu estiver errado. A falta é minha, bem sei, por ter me
afastado. Acabei soltando o livro “a Harte de vIVer” por aqui e deixei que as
coisas andassem sozinhas. Vez ou outra respondo a um e-mail de um leitor na
minha caixa de mensagens, mas já não posto mais minhas respostas por aqui.
Acho que fiquei velho e ninguém mais está interessado em
ouvir as coisas que tenho a dizer, sei lá, será que estou querendo confete?
Kkkk....provavelmente sim. Estou carente, deve ser isso...rs.
Vou ser breve ao falar de mim porque quero mesmo é falar de
um filme, uma série da Netflix que acabei de assistir às 6 horas da manhã de ontem e me fez refletir sobre muitas coisas. Estou em férias e de licença médica.
Nada grave. Meu psiquiatra diagnosticou Síndrome de Burnout. Estou com problemas
sérios de memória, falo 2 línguas, mas às vezes esqueço construções básicas na
minha língua nativa, português, e na minha segunda língua, inglês. E há uma
outra série de fatores referentes à memória recente que têm me afetado, mas não
vou falar disso. Tudo isso é resultado de quase 10 meses ininterruptos de
trabalho diário que beiravam quase todos os dias, 12, 14, até 16 horas ao dia
em home office graças à pandemia...chega uma hora em que a mente e o
corpo cobram o prejuízo, isso eu já sabia.
Minha contagem de linfócitos CD4 em dezembro de 2020 estava
em 1000 e alguma coisa, ótima contagem já há alguns anos...meu recorde é 1228.
E a carga viral para o HIV já faz muito tempo também está indetectável! Wow!
Que notícia boa! Então está livre de infecções, Anderson? – muitos podem estar me
perguntando aí. Infelizmente não, primeiro porque acho que nossos linfócitos
são meio, como diria? Sendo politicamente correto em tempos de hoje? Bem, eu
diria que os linfócitos de soropositivos que vivem com HIV há 33 anos como eu,
são meio quê, linfócitos com necessidades especiais, se é que me
entendem...rs. E para quem leu meu livro e sabe que em 1987 fiz uma cirurgia de
retirada de condilomas, no auge da epidemia de Aids, quando ela era ainda fatal
caso ficássemos doentes, e depois tive que fazer outra cirurgia em 1994, 7 anos
depois, porque eles voltaram, e agora, em 2020, 26 anos após a segunda
cirurgia, terei que fazer outra cirurgia, pois eles retornaram. “Mas como
assim, doutora? Estou vendendo CD4 e estou indetectável, podem mesmo ter
voltado? Por quê? – perguntei à médica há cerca de uma semana. E a resposta
dela foi: “stress, provavelmente pelo stress que passou trabalhando sem parar
todos estes meses de “isolamento”, seu organismo não aguentou e eles retornaram.
Vamos ter que operar você novamente”.
E lá vamos nós! Depois conto a vocês como correu tudo. Acho
que ainda não vai ser desta vez...rs....já deu pra perceberem que sou duro na
queda, né?
Tirando isso e o problema mental, estou bem...rs. Bem, só
contei a vocês por que depois de 2 anos desaparecido não podia contar só coisas
boas, né? Mas tenho certeza de que será só mais um capítulo meio chato nos
capítulos por vir na 2ª parte do Harte...rs... afinal de contas parei em 2003
e muita coisa boa aconteceu de lá para cá, mas fica para um segundo livro.
Vamos à razão pela qual eu vim até aqui hoje. Quem já viu a
série da Netflix “Pose” e discordar com algo que eu diga aqui nas próximas
linhas, por favor, fique à vontade pra discordar nos comentários, ok?
A série é composta de 18 episódios de em média 45 a 60 minutos
cada um. E o melhor de tudo: tem fim. Sim, porque eu perco interesse por séries
pelas quais tenho que esperar 1 ano para continuar a ver. Me perco na estória e perco interesse, não vejo mais. Foi assim com Lost, Lucífer, A Casa de Papel e
até mesmo com How to Get Away with Murder com a diva Viola Davis. Tenho
muitos amigos que não assistem por causa dessa descontinuidade, maior ainda
agora causada pela pandemia do coronavírus nos estúdios de gravação. Voltando
ao assunto; pra mim, a série acaba no último episódio da Temporada 2, 18º episódio.
Se os produtores quiserem ainda tem história, mas ficou tudo bem resolvido no
último episódio. Exceto por uma curiosidade minha que ficou, mas não vou dar
spoiler.
Pose (do verbo “posar” em inglês e uma alusão ao strike a pose de Madonna) conta a história de
pessoas que vivem à margem da sociedade americana em 1987. Sim, mesmo ano em
que eu, Anderson, descobri que era HIV, mas até aí, pensei, já na primeira
cena, quando vi a indicação da época: nada a ver, deve ser um filme chato que
me recomendaram só porque fala de Aids naquela época, deve ser um terror só,
não vou passar do primeiro episódio, porque não gosto de tragédia, drama
tudo bem, mas tragédia não...rs..., mas eu estava errado. A série conta a
história dos travestis, do gueto gay na Nova Iorque de 1987 até aproximadamente
1990, 1991, se não me engano.
Blanca é uma travesti de origem latina que does not pass (não
passa facilmente por mulher) e que tem dificuldades em se aceitar por isso. A
frase “you pass” (você passa por mulher) aparece de quando em vez durante
a série como o melhor elogio que uma travesti ou transexual possa receber.
Algumas são lindas, perfeitas, they pass, mas Blanca não.
As personagens das travestis Elektra e Angel são bem sucedidas
porque elas passam, o mesmo não acontece com Blanca, que luta pela sobrevivência
trabalhando como manicure e participando de concursos à noite em uma boate gay
onde as pessoas vivem verdadeiros sonhos representando temas da sociedade (categorias
de vestimenta) através de carões e roupas e acessórios que as levam a representar
pessoas da sociedade à qual elas não pertencem: a executiva, a mulher real, realness
(leia-se: o mais próximo que conseguem chegar de uma mulher cisgênero, ou seja,
uma mulher que convive perfeitamente satisfeita com sua forma física e gênero
com o qual nasceu, algo muito próximo do antigo termo “heterossexual”...rs
), luxo, a madame na casa de chá, o militar, etc, etc, etc...infindáveis categorias
que nos deliciam e chegaram até a me cansar depois de alguns episódios, mas não
foi isso que me chamou a atenção.
O que mais me chamou a atenção é a maneira como as
personagens são tão bem construídas e tão reais, embora estejam tão distantes da
vida da maioria de nós. Quantos de nós convivemos no submundo dos travestis? Eu
sou um homem gay e o mais próximo que cheguei de uma travesti em meus 53 anos
de vida foi observando-as no palco nas boates na época em que eu as
frequentava. Ou através da diva Rogéria, que teve acesso às telas da TV porque
a rotularam de travesti da família e permitiram que ela entrasse em nossas
casas. Se ela fosse desbocada como Dercy Gonçalves, não teria chegado aonde
chegou, com certeza. Rogéria não podia ousar além do seu talento artístico,
caso contrário, não teria sido “aceita”. Quem aí ouviu Roberta Close dizer
alguma barbaridade que chocasse? Não, era uma boa moça, e Roberta passava,
passou, porque virou mulher através da dolorosa cirurgia cujas dores só elas mesmas
devem ser capazes de narrar. A atual (reprisada) novela “A Força do Querer”
explica bem a diferença entre um travesti e uma mulher e um homem trans. Os
transexuais não são felizes com o corpo que têm, não o aceitam e sofrem com
isso, almejando um dia poderem alcançar a graça de sofrerem uma cirurgia que
possa dar-lhes a genitália com que sonharam desde que assim se descobriram. Já
os travestis são homens que vivem sua mulher interior de forma às vezes
extremamente convincente, mas gostam da genitália que têm, e não a menosprezam
nem tampouco a abominam. E os gays (homossexuais), como todos sabem, são homens
que gostam de homens e mulheres que gostam de mulheres. Alguns homens gays gostam
de homens mais masculinos, outros gostam de homens mais afeminados, mas no final
das contas somos todos gays. E há várias categorias criadas, razão pela qual criaram a sigla LGBTQIA+. Em suma, somos todos objetos de preconceito até os
dias de hoje. E pasmem, muitos de nós temos preconceito contra nós mesmos,
homens gays contra mulheres gays, homens gays contra homens gays passivos, homens
gays contra gays afeminados, homens gays contra travestis etc., etc., etc....enfim,
somos todos humanos e complicados. Não somos nem melhores nem piores do que outros
seres humanos. Somos todos da mesma raça: a raça humana, mas nos dividimos em
inúmeras categorias, que me atrevo a dizer, uma mais imperfeita que a outra e
todas se acham perfeitas. Não vou nem entrar no tema cor da pele, etnia, classe
social, religião e tendências políticas porque não terminaria nunca de escrever
e não chegaria à conclusão alguma.
“Pose” nos mostra seres humanos, não nos mostra heróis, mas
nos mostra verdadeiros seres humanos. Sim, porque aquela pessoa que eu odeio em
minha vida porque é mesquinha, porque é má, porque é traiçoeira, aquela mesma
pessoa, é um anjo para outros, nunca os feriu nem os ferirá, porque os ama e precisa
deles, porque precisamos das pessoas que amamos, e tentamos dar o troco diariamente
às pessoas que nos fazem mal. Ou simplesmente fugimos delas porque não temos
forças para enfrentá-las, mas nos esquecemos que em algum lugar elas são
amadas, porque merecem também ser amadas. Eu não tenho dúvidas que muitos me
odeiam porque mostro a eles o pior de mim, e muitos me amam porque lhes mostro
o melhor de mim. Porque sou humano.
Pose me fez pensar que ninguém é vilão/vilã ou herói/heroína.
A história me fez odiar e amar a mesma personagem inúmeras vezes. Alguns são
capazes de agir da forma mais baixa à qual um ser humano pode chegar para sobreviver,
e esta mesma personagem me fez chorar quando demonstrou sua vulnerabilidade e
me fez entender que muitas das vezes atacamos no intuito de nos defendermos do
sofrimento que tememos sofrer caso nos mostremos vulneráveis. Assim fazem todos
os animais, e nada mais somos do que animais, bem sabemos disso, racionais,
quase sempre.
Eu mergulhei em minha própria história narrada em meu livro e
na história de muitos de nós através da narrativa da série. Recordei o
preconceito sofrido por ser soropositivo dezenas de vezes durante a vida. Ainda
sofro até os dias de hoje, em 2020. 2021 mal começou, estou em distanciamento
social e ainda não deu tempo de ninguém me magoar por ser preconceituoso
comigo. Pose me fez lembrar de algumas coisas. Lembrei que tive a sorte, o
privilégio, de embora ter nascido pobre, ter nascido branco de olhos azuis em
um país extremamente racista. Embora seja gay, ter tido a sorte de conseguir
esconder minha feminilidade e assim agradado às pessoas que me dizem: “ah, mas
você nem parece”, me fazendo entender que sendo masculino sou mais aceito. Nem
sei se sou masculino, mas me fizeram acreditar nisso. O que é uma grande
besteira, porque na maioria das vezes estou fingindo, escondendo o que tenho de
mais bonito em mim, minha docilidade, minha sensibilidade, em nome de um melhor
viver na cruel sociedade na qual vivemos. Em nome de não ter portas fechadas,
mas isso muitas vezes na vida me fez sentir um traidor diante daqueles que simplesmente
não conseguem ser diferentes, são simplesmente o que são porque não têm o
talento que eu tenho pra fingir, fingi tanto que me tornei o que fingia. Mas
muitos apanham por isso, são mortos e torturados por serem quem são. E isso é
muito errado. É o mundo que tem que mudar, não eles!
Sei que dentre estas 18.000 pessoas que já passaram por aqui
nestes anos todos, muitos são soropositivos como eu, ou talvez trans, lésbicas,
gays machões, gays afeminados, gays considerados feios, bonitos, de pele branca,
de pele preta, asiáticos, não importa, sei que cada um é um, e todos temos o
direito de existir e ser feliz, na medida do possível, neste mundo tão lindo e
tão cruel no qual vivemos.
Como tenho uma mente matemática, embora seja de Humanas, sei
que quando completei 40 anos, em 2007, eu havia vivido metade da minha vida sem
o vírus e a outra metade com ele. E acreditem, talvez sem ele eu tivesse sido uma
pessoa extremamente fútil e vazia. O vírus me mostrou que eu não era nada aos
20 anos, independente da minha beleza física e inteligência, eu nada era, e ainda
nada sou, mas ele me fez tentar ser melhor, lutar contra ele. E não sou super
herói por tê-lo vencido até o dia de hoje, só tive a sorte, a benção, de ter um
organismo que por alguma razão levou 12 anos para sucumbir à presença dele, e
quando sucumbiu pela primeira vez, a ciência já havia feito muito mais do que
ter inventado apenas o AZT, que sozinho mais matava do que salvava devido à sua
toxicidade. A mesma sorte não tiveram milhões, dentre eles, amigos meus que se
foram até pouco tempo atrás, e muitos, muitos famosos: Rock Hudson, Cazuza,
Sandra Bréa, Lauro Corona, Fred Mercury, e tantos outros que se eu for escrever
aqui nunca terminarei este post.
Matematicamente também sei que quando eu fizer 60, daqui a 7
anos, terei convivido com o vírus da Aids por 2/3 (dois terços) da minha vida.
É tanto tempo! E tão pouco tempo. É muito tempo quando temos 20, mas quando
temos 53, 60 anos são nada. Nem 70, e talvez nem 80, tudo depende da forma que
vivemos, da forma que lidamos com as pessoas, que são a verdadeira razão para
estarmos aqui, para aprendermos a lidar com elas e com nós mesmos. O resto é
descartável, desaparece.
Pose nos mostra a vida e a morte dentro de uma perspectiva
por muitos de nós sequer imaginada. Não estou falando do fantasma que vez ou
outra aparece em alguns episódios, embora eu acredite neles e na vida espiritual.
A vida é mostrada através do gueto, que a maioria de nós, acredito, não conhece
na vida real. A maioria. Acredito que alguns leitores tenham convívio com essa
realidade, claro, mas são minorias que acessam um blog, infelizmente. Pra ser
sincero, acredito que a maioria de nós viva em uma bolha, e me incluo nisso. Na
bolha da Esquerda, do Centro, da Direita, da Classe Média, da Classe B, C, D,
enfim, Pose me fez sair um pouco da minha bolha, embora a temática Aids seja
comum a muitos de nós, viver à margem da sociedade não é, acredito eu. E foi muito
bom conhecer esse mundo, mesmo que cenográfico, porque de agora em diante vou
procurar olhar os travestis com mais respeito, com menos medo, lembrando sempre
que são seres humanos como nós que não tiverem um terço da chance que nós
tivemos. Quando falo de respeito falo mesmo no sentido de admiração, nunca desrespeitei
um travesti, mas tive medo deles. E o filme me fez entender que eles têm que se
defender diariamente dentro de uma realidade por mim jamais imaginada, ou melhor,
já sim imaginada, mas nunca tão bem representada através de uma câmera e um enredo.