Recebi há pouco um e-mail de um leitor e após respondê-lo, decidi dividi-lo com vocês. Vou chamar o leitor de Henrique aqui e espero que a resposta que enviei a ele seja de alguma valia a outras pessoas também. Peço desculpas caso contenha muitos erros, pois já é tarde e não tive tempo de revisá-lo.
Grande abraço!
Anderson
Olá Anderson! Tudo bem?
Sou jovem e descobri ser soropositivo recentemente. Li o seu livro e sua história é inspiradora. Só não entendi uma parte, quando você relata que teve uma pneumonia e falou que viu a imagem da sua falecida avó (se não me engano), você teve uma experiência de quase morte? Outra questão, que fico extremamente angustiado, porque são muitas incertezas com relação ao futuro, o medo é paralisante. Como você lidou/lida com essas ansiedades? É uma sensação de tenho que fazer tudo depressa ou fim da linha. Dá para levar uma vida normal? Você tem muitos efeitos colaterais da medicação? Meu maior receio são os efeitos colaterais a longo prazo que podem provocar outras doenças no organismo. Por ultimo, sei que você não é médico ou cientista, mas você acredita na cura? Te pergunto isso, porque sei que a intuição pisciana não falha, rsrs. Desculpa a quantidade de perguntas, mas é que preciso tc com alguém que lide com esse vírus a mais tempo. Abraços, Henrique!
Henrique, meu querido! Muito obrigado
pelo seu e-mail! Fico muito feliz quando recebo e-mail de leitores! Me dá a
certeza que uma das coisas mais acertadas que fiz nestes meus quase 30 anos de
soro positividade foi ter escrito o “Harte de vIVer”! Foram quase 3 anos de
trabalho que realmente valeram a pena!
Respondendo à sua primeira pergunta: sim,
o que tive em 1996, há exatos 20 anos, foi uma experiência de quase morte, ou
melhor, pra mim, uma experiência de intensa vida! (risos)...eu me explico, é
porque pra mim a morte não existe, meu querido! A morte é o que vivemos aqui,
nosso espírito está encarcerado pela carne do corpo. E quando tem oportunidade,
ou seja, quando dormimos, se liberta por instantes e vai realmente viver a
vida...no caso da minha narrativa no livro, eu não estava dormindo, estava
prestes, ou ao menos naquele momento acreditava, que estava prestes a morrer, e
pude viver aquela experiência de forma consciente, coisa rara para muitos, como
é pra mim, mas bastante comum para outros que têm a oportunidade de se lembrar
diariamente, quando dormem, das viagens espirituais que fazem. São as chamadas
viagens astrais conscientes. No meu caso, tive poucas das quais me lembro nesta
vida, mas no livro há lá um capítulo que fala de uma experiência que tive
quando estava em Londrina em casa de meu amigo Vítor. Para mim, aquilo me
serviu, lá atrás, pra me conscientizar que a vida ia muito além daquilo tudo,
ou melhor, daquilo tão pouco que a vida se mostrava pra mim. Foi o gatilho pra
minha entrada na conscientização da espiritualidade. Foi a forma, à minha forma
de crer, que o Plano Espiritual encontrou para me fazer consciente de que esta
vida é apenas um minúsculo capítulo no nosso grande livro da vida, a vida
verdadeira, a espiritual, esta sim é a verdadeira e infinita. Esta aqui que
vivemos neste momento, é apenas um pequeno momento de aula escolhido por nós
mesmos, pra exercitarmos nosso aprendizado evolutivo. Estamos aqui para
evoluir, e como o planeta que habitamos é ainda na escala evolutiva, um planeta-escola
de nível intermediário, aqui sofremos e aprendemos, e aqui também somos felizes
e aprendemos. Cabe a nós entendermos as lições como momentos dolorosos nos
quais sofremos e somos vítimas, ou como verdadeiras pérolas existenciais com as
quais somos presenteados e crescemos através das inúmeras provas pelas quais
passamos. Tudo é uma questão de como vemos essas provas. Eu, sempre que posso,
procuro entender as provas como gatilhos de evolução. Acabei de passar por um e
preciso muito escrever sobre ele, mas não será neste e-mail que lhe escrevo.
Ah....e deixo claro aqui que não estou falando de religião, independentemente
da religião que cada um tem, seja ele/a muçulmano/a, católico/a, espírita,
crente, evangélico/a, etc...etc...etc...as provas são as mesmas, são
experiências através das quais nos melhoramos, evoluímos.
E há aqueles que dizem que alguns pioram
com determinadas provas, pois se revoltam, passam a usar drogas, se tornam
pessoas amargas, isso ou aquilo, mas não é verdade. Porque não há na escala
evolutiva coisa tal que se possa chamar de regressão, ou involução, não, meu
amigo, não há. Por mais que achemos que alguém se tornou uma pessoa pior por
causa de uma prova, nos enganamos, pois a revolta não será eterna, e lá na
frente, e quanto a isso cada qual tem o seu tempo, lá na frente, haverá um
momento de reflexão, e aquela prova terá cumprido seu intento...que é de nos
fazer evoluir, pode acreditar!
Vou escrever mais sobre isto em breve,
estou saindo de um momento difícil, de uma prova, mas já estou quase bem, e em
breve poderei fazer dela um momento de reflexão e transformar, transmutar, toda
a energia que acreditei ser negativa, em algo extremamente positivo, em puro
amor, que é o final de todas as coisas nesta vida, e é para isso que aqui
estamos, Henrique.
Bem, Henrique, respondendo à sua segunda
pergunta, sobre se dá para levar uma vida normal...acho que sou prova viva
disso, né? A ansiedade é algo que mina nossos pensamentos e ações, é o mal do
século, independente de a pessoa ser soropositiva para o HIV ou soronegativa,
isso não importa. O número de pessoas que sofrem de ansiedade hoje em dia é
colossal! E não pense você que eu sou um super-herói que não sofre de
ansiedade! Bem que eu gostaria, o que eu posso lhe dizer em relação a isso é:
você não é o HIV, você não pode deixar que “ele” seja você, ou que seja
responsável por sua vida. Ele é algo hoje muito, muito, imensamente menor do
que ele era em 1987, acredite! Hoje ele é um vírus que pode ser controlado
pelas medicações e principalmente por você, não no sentido que ele tenha
perdido sua importância no que tange os cuidados que temos que ter com nossa
saúde, etc, mas no sentido que ele é apenas um detalhe na sua vida, como
inúmeras mazelas que atingem as pessoas em suas histórias de vida: a leucemia,
o diabetes, as bactérias cada vez mais poderosas e resistentes, etc. Eu acabei
de sair de uma internação de 6 dias por ter sido atingido pelo vírus rotavirus.
Saí do meu trabalho no sábado, 05/11, estava me sentindo a pessoa mais normal
do mundo, e quando vi estava internado em um hospital com a vida se esvaindo de
mim em águas intestinais e provocando o mal funcionamento dos meus rins, que
ficaram sobrecarregados com a desidratação. Pois bem, passei por mais esta, mas
ainda estou aqui, 6kg mais magro e ainda um pouco enfraquecido, mas consciente
de que a vida continua e que foi só um recadinho que meu corpo me enviou, do
tipo: você não é um super-herói, passou por poucas e boas nos últimos dias e
gostaríamos de lembrá-lo que caso não se cuide, não se alimente, não se
fortifique, os vírus e as bactérias estão de olho em você para trazê-lo de
volta à realidade ou levá-lo dela por pura falta de cuidado de sua parte!!!
O que eu quero dizer com isso tudo,
Henrique, é que vivemos melhor nossas vidas quando vivemos cada dia como se
fosse o último. Não por causa do HIV, mas porque simplesmente é assim que a
vida é. Você acha que Domingos Montagner estava preocupado com o HIV quando
entrou no rio para nadar? Ou que aquela moça da Vila Mariana cujo ex-marido, ou
ex-namorado, sei lá quem era aquele indivíduo, lhe ceifou a vida com um tiro e
deixou seu amigo talvez paraplégico; estava preocupada com o HIV? Todos os
dias, todos os dias, Henrique, bebês, crianças, jovens, adolescentes, senhores
de idade, pessoas em todas as partes do mundo, se despedem desta vida por um
motivo ou por outro. O fato de termos HIV não deve ser um problema pra nós,
pelo contrário, deve sim ser algo que nos impulsione à frente, sem pressa, no
sentido da ansiedade, mas com pressa sim, no sentido de vivermos nossas vidas
intensamente.
O que atrapalha a vida do ser humano não
é o HIV ou qualquer outra doença, o que nos atrapalha é o medo, meu amigo. Medo
de perder o emprego, medo de perder o grande amor de nossas vidas, medo de ser
traído, e pra nos livrarmos deste último, muitos de nós trai antes, sem nos
apercebermos que estamos traindo a nós mesmos, a ninguém mais.
É o medo que nos torna falíveis, não as
dificuldades que vivemos. Eu tenho HIV, o outro tem câncer, aquele outro sofre
de transtornos psicóticos, aquela outra sofre de ansiedade e pânico, e mais
outros, e mais outros, cada um com seu “fardo”, Henrique. Ah...mas e aquele
outro lá que é rico e não tem problemas financeiros, tem um grande amor, é
famoso e é feliz? Por que com ele tudo dá certo?
E quem foi que disse que ele está feliz?
Talvez ele seja mais infeliz do que eu e você e todos os outros juntos. Como eu
disse anteriormente, isso aqui é uma escola, não existe ninguém extremamente
feliz cuja vida é um conto de fadas. Isso só existe no facebook e todo mundo
sabe que é mentira, não é mesmo?
A chave pra mim é o espiritualismo, não a
religião, mas a consciência de que estamos aqui por algum motivo e temos
obrigação de fazemos o nosso melhor com HIV ou sem HIV, com desgraça ou sem
desgraça. Tudo se resume em uma só palavra: Amor. Estamos aqui para amarmos uns
aos outros, cada um sendo útil à sua maneira. Não importa como, não há receita
infalível, mas o que não podemos e não devemos fazer, é perder tempo olhando só
pra nossos problemas e medos e nos esquecendo que fora da caridade não há
salvação. Não temos que descobrir a cura da Aids para sermos úteis, ou inventar
o Whatsapp, ou uma startup milionária! Se assim fizermos, parabéns para nós,
mas sendo bom profissional, bom filho, bom irmão, bom amante, bom cidadão, bom
aluno, bom professor, bom cozinheiro, bom faxineiro, bom cientista, etc, já
estamos fazendo nossa parte.
Hoje eu entrei numa loja de doces
variados na Vila Mariana e havia lá uma pedinte. Ela tinha uma criança de seus
7, 8 anos consigo. Ela era negra e jovem, talvez fosse usuária de drogas, não
sei. A caixa chamou sua atenção e pediu que se retirasse, que ali não era
permitido abordar as pessoas. Ela ficou na porta da loja. Em minha sacola havia
um pacote de bolachas e uma garrafa de suco. Ela me pediu que lhe pagasse um
suco, eu respondi que não tinha dinheiro. Na verdade eu tinha dinheiro, mas não
ia me expor ali na frente da loja tirando minha carteira do bolso. Ela não
hesitou e respondeu: então me dá este suco que você comprou aí e que está na
sua sacola.
Eu me vi prestes a responder: o que lhe
faz pensar que eu tenho a obrigação moral de me sentir culpado por poder
comprar uma garrafa de suco, menina? – mas eu nada disse, só lancei um olhar de
desaprovação a ela, que ela vai entender como descaso, e me retirei daquele
local.
O que eu estou tentando ilustrar com esse
caso, Henrique, é que a pobreza, a cor da pele, as injustiças sociais, a
orfandade, o uso de drogas, portar o HIV, trair, ser traído, enganar, mentir,
dizer a verdade, engordar, emagrecer, fumar, beber, ser abstêmio, isso tudo são
escolhas que fazemos, escolhas cujas trajetórias nos levarão a algum lugar.
Tudo nesta vida é experiência, a forma como as vemos e vivemos, as
experiências, fica a cargo de cada um de nós.
Um adolescente de classe média que não
consegue fazer uma viagem ao exterior com os amigos do colégio, pode, ser, se
sentir, estar, muito mais infeliz do que uma pessoa pobre que vê um chocolate e
não pode compra-lo, entende? Pois não são as situações que são terríveis, mas a
forma como as vemos. Nós nos vitimamos demais diante das dificuldades, e eu não
sou diferente dos outros, só me sinto em vantagem às vezes porque minha ficha
costuma cair mais rápido do que da maioria das pessoas que conheço....rs...mas
não sei se isso é vantagem ou desvantagem....rs
Eu fui ao fundo do poço porque me
apaixonei por alguém que dizia que era o tipo de pessoa que se estava com
alguém, estava somente com este alguém. Eu acreditei naquilo, quis acreditar
naquilo. Ele me dizia que nos imaginava envelhecendo juntos num futuro próximo,
que me amava, me mandava mensagens todos os dias impreterivelmente todos os
dias às 6 da manhã, me ligava várias vezes ao dia, eu comprei inúmeras
passagens de avião antecipadas que agora são somente faturas de cartão de
crédito, enfim, pra resumir, eu parei de comer, parei de produzir, parei de
escrever, parei de amar o ser humano e até a mim mesmo por causa disso tudo.
Porque quando eu descobri que ele me “traiu”, meu mundo caiu. Ele sumiu,
simplesmente disse que não estava pronto pra amar ninguém e não respondeu mais
minhas mensagens, não me imaginou mais envelhecendo ao lado dele, não me mandou
mais mensagem alguma, não se preocupou mais em saber se eu estava seguro ao dirigir
pra casa à noite, sumiu, desapareceu, deve ter até se sentido aliviado por não
ter mais que falar comigo.
Enfim, a culpa é dele? Ele é o mau e eu
sou o bom? Não, se estou passando por isso, se passei por isso, foi porque por
algum motivo isso me serviu como experiência, entende? É claro que como não sou
super-herói, aquilo tudo me provocou muita tristeza e sofrimento, mas já estou
melhor e hoje posso ver isso tudo como mais uma experiência. Eu não tenho mais
raiva dele nem sequer visualizo nesta vida uma relação com ele, mas não sei o
que o futuro nos reserva. Talvez eu o reencontre ainda nesta vida e possa um
dia conversar sobre tudo que vivemos, talvez ainda venha a viver com ele uma
linda e verdadeira história de amor nesta ou em uma vida próxima, ou talvez
nunca mais o reveja nem nesta vida nem em outra, mas a experiência que vivi com
ele daqui, de mim, nunca mais sairá, isso não há como negar.
Eu vivi uma relação de 15 anos que
terminou há pouco mais de 2 anos, achava que nunca mais iria amar ninguém na
vida, que isto era algo que não me dizia mais respeito. E olha o que eu vivi? E
quem sou eu pra achar que só porque vou fazer 50 anos em fevereiro nunca mais
vou amar ninguém? Este é o grande barato da vida, Henrique! A própria vida,
suas surpresas, suas provas, suas quedas e levantes, o mais importante não é eu
ter o HIV, ou ter sido bonito, ou ter um bom emprego, ou já ter passado fome, o
importante é a vida até o dia em que ela durar, meu amigo. E ela nunca acaba,
haverá um dia em que ela vai terminar pra mim aqui neste mundo, mas comigo, com
meu espírito, ela sempre estará, e é isso que importa para mim, entende?
Respondendo sua última pergunta: sim, eu
acredito que a “cura” para o HIV está próxima e acontecerá, mas virão outros
vírus e outras doenças, porque é pra isso que estamos aqui, pra sobreviver a
todos eles. E de alguma coisa eu vou morrer, até porque não sou mais nenhuma
criança. Devo viver mais, 10, 15, 20 anos? Não importa, viverei até quando
tiver que viver. Perdi amigos pro HIV quando eles tinham 20 e poucos anos, 30,
40, 50, 60 anos, cada um teve sua história. Não morreram por causa do HIV,
morreram porque estava na hora de continuarem suas vidas do outro lado de onde
todos viemos. Eu não morri por causa do HIV nestes quase 30 anos mas perdi
muita gente por causa dele. Por que não morri? Não sei, acho que um dia vou
saber, ou melhor, tenho certeza que um dia vou saber, mas no momento isto não
tem a menor importância, porque o HIV faz parte da minha experiência de vida.
Não me fez nem melhor nem pior, mas não posso negar que teve e tem grande
influencia em minha vida, não fosse por ele não seria o que sou hoje, não teria
escrito o “Harte” e não estaria aqui te escrevendo, né? E pra terminar, não
sofro de nenhum mal grave por causa dos medicamentos, meu querido, meu corpo
está mudando, não por causa dos medicamentos, mas por que vou fazer 50 anos e
tudo cai, é a lei da vida, da gravidade....rs...não posso reclamar de nada não.
Bem, preciso terminar porque amanhã cedo
vou fazer uma viagem pro interior e quero estar bem pra dirigir...voltei a
dirigir esta semana depois de quase duas semanas de cama.
Um grande abraço pra você, Henrique!
Espero que meu enorme texto tenha lhe ajudado de alguma forma, ok? Escreva
sempre que quiser, é sempre um prazer escrever às pessoas que têm sede de
algumas palavras baseadas em minha experiência neste assunto. Não sou o único
soropositivo da face da terra, infelizmente, mas tento dar aqui minha pequena
contribuição contando um pouco das minhas experiências. 😉
Fica com Deus!
Grande abraço!
Anderson